Meus caros,
O conto que abaixo transcrevo foi escrito no dia 23 de dezembro, num momento em que estudar me era impossível, estando também incomunicável (sem metro, sem crédito no telemóvel e sem internet em casa). Trata-se de uma pequena brincadeira que fiz em relação ao tema da minha exposição relacionado à disciplina do Prof. Dr. Vasco, qual seja A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade.
Encaminhei ao Professor por e-mail, no dia 24, pois sei que o mesmo compartilha do meu apreço em relação a metáforas, parábolas e “institutos afins”.
Na última aula fui intimado pelo Professor a postar o conto no Blog. Apesar de julgar mais apropriado, no momento, produzir um conto carnavalesco, não me atreverei a desobedecer aquele que será responsável por um terço da minha nota nesse mestrado.
Assim, segue:
Um Natal com Democracia, Direito, Montesquieu e os Três Poderes
Era uma vez uma bela donzela, chamada Democracia, e um ilustre senhor, de alcunha Direito. Andaram eles por séculos separados, até que, num belo dia, resolveram por bem se encontrar e celebrar o que se pretendia eterno matrimônio, jurando fidelidade recíproca e respeito mútuo. Mudaram definitivamente o Estado (de solteiro para casado), mas não gozaram por muito tempo da máxima de “viverem felizes para sempre”, pois adotaram três rebeldes filhos, que constantemente dão problemas ao casal.
Passando por diversos lares adotivos, Judiciário, Legislativo e Executivo sofreram abusos, foram mal tratados e, também, receberam diferentes tipos de ensinamentos e criações. Em cada novo lar havia um deles que era o preferido, e, portanto, gozava de regalias, enquanto os outros eram relegados ao descaso. Isso criou entre eles um forte gosto pela disputa de poder, motivo pelo qual foram apelidados de Poder Judiciário, Poder Legislativo e Poder Executivo.
Mas a Sra. Democracia e o Sr. Direito, comovidos com a péssima situação em que se encontravam os Poderes decidiram pela adoção. Os três irmãos receberam muito carinho dos novos pais, que os tratavam com igualdade. Essa igualdade, é de se ressaltar, representava conferir igual cota de poder para cada um deles, dividido este de acordo com a predileção que cada um já demonstrava ter. Um professor francês foi chamado para ensinar os Poderes a saberem repartir, bem como a cuidar um do outro, observando sempre os princípios defendidos por seus novos pais. O professor lhes disse que cada um deles era dotado de uma especial capacidade, o que lhes conferia especiais competências. Essas poderiam ser trabalhadas na administração do grande Condomínio Leviatã. Disse ainda que o sucesso dos três dependeria diretamente do caminhar conjunto e harmônico destes, em auxílios recíprocos e também com bastante controle mútuo. Deveriam se observar buscando coibir excessos e omissões quando notados.
O Legislativo é certamente o mais popular dentre eles. Em virtude desta popularidade demonstra sensibilidade para julgar aquilo que os moradores, funcionários e visitantes do Condomínio querem e precisam, estabelecendo assim planos, normas, regras de convivência... Mas ele não tem a força realizadora de seu atlético irmão, o Executivo, cabendo a este colocar em prática os planos do Legislativo. Já ao terceiro, mais sábio e estudioso, cabe julgar se ditos planos são realmente bem executados, sem distorções, devendo também resolver e controlar toda a comunidade que habita ou visita o Condomínio Leviatã.
Com isso foram eles apresentados em assembléia ao povo do Condomínio Leviatã, que ficou muito satisfeito em saber que teriam a representatividade do Legislativo, a força atuante do Executivo e a sabedoria do Judiciário para conduzir todos a uma situação melhor. Nesta mesma assembléia, o povo, através de representantes para as mais variadas classes ali encontradas, transmitiu através de um contrato social (o qual já havia sido usado em outros tempos, por sugestão do Sr. Rousseau) os poderes que desejava aos três irmãos. Neste mesmo contrato ficaram estabelecidos alguns valores, princípios e normas que o povo do Condomínio julgava serem os corretos. E, por conta de algumas experiências mal sucedidas no passado, ficou decidido que desde logo os três poderes ficariam limitados em suas ações por estes valores, princípios e normas (seja na elaboração, na execução ou no julgamento de qualquer plano).
A Sra. Democracia achou tudo isso muito bom, pois todos os condôminos tiveram oportunidade de serem ouvidos (através de seus representantes). O Sr. Direito, por sua vez, deliciava-se com o contrato assinado pelo povo do Condomínio, o qual seria a partir de então seu “livro de cabeceira”.
Mas os três irmãos, que de início pareceram se contentar com os poderes que receberam, começaram aos poucos a querer fazer um o trabalho do outro. Isso gerava brigas infindáveis em casa, onde os irmãos se atacavam e reclamavam aos pais sobre a invasão de um ou de outro, aqui ou acolá. Os pais, por sua vez, mantinham-se unidos e centrados na hora de apaziguar os ânimos e definir quem estava certo ou errado, ou se estavam ambos errados e, portanto, ficariam de castigo sem poder assistir televisão. Uma das grandes discussões entre eles envolvia um acréscimo ao poder do Judiciário, que passou então a poder avaliar não apenas se o Executivo bem cumpria as leis, mas também se estas estavam em conformidade com aquelas regras gerais que o Condomínio estabeleceu, e que vinculariam por certo todos os três irmãos. O Legislativo não gostou da situação, mas acabou por aceitar (com mágoa).
Porém, chegou o momento em que um caso específico dividiu o casal, sendo este o início do fim daquele pretenso “viveram felizes para sempre”.
Aconteceu que o Legislativo ficou sedento pela produção de regras, dificultando o trabalho de seu irmão Judiciário, já cansado de tanto trabalhar, que nem sempre podia ouvir em tempo ou com a devida atenção todas as dúvidas e aflições do povo do Edifício em relação a teóricas ofensas cometidas pelo Legislativo ao contrato já mencionado. Nisso, o Executivo, que também tinha seu grau de popularidade, não queria ficar mal com o povo do Leviatã, e com isso passou a preferir não aplicar uma regra escrita pelo irmão Legislativo, dizendo que esta feria o contrato com os condôminos.
Pronto! Estava armada a confusão.
Era noite de natal, o Legislativo chegou em casa reclamando que o desaforado Executivo não mais queria obedecer as regras por ele criada. De outro lado, o Judiciário ficou ofendido ao perceber que o mesmo irmão julgava-se agora mais sábio e atuante que ele, captando para si a competência de definir o que está ou não de acordo com as normas do condomínio. Já o Executivo defendia-se dizendo que estava apenas cumprindo aquilo que o contrato do Condomínio lhe exigia, ou seja, a observância e proteção dos direitos tidos ali como fundamentais.
Por infelicidade, nesse dia o professor francês fazia uma visita à família e ficou aterrorizado com a discussão. A anfitriã Democracia logo se pôs a tentar esfriar os ânimos, dizendo que tudo aquilo era meninice do Executivo, mas que a partir de hoje ele não mais se meteria a fazer aquilo que não lhe compete. Nisso, olhou para o Sr. Direito, proferindo um “não é mesmo, querido?”, aguardando a costumeira concordância (afinal, a Sra. Democracia gostava sempre de ouvir as opiniões alheias, principalmente quando idênticas à dela). Mas, é de se dizer que aguarda até hoje, pois o Sr. Direito foi seco em dizer que se colocava em defesa do Executivo, pois julgava correta a postura deste em defesa dos direitos fundamentais.
A Sra. Democracia parecia não crer no que ouvia, e pôs-se logo a perguntar se o professor não desejava mais uma xícara de chá. Mas não, o que ele desejava era defender a separação dos poderes por ele criada (já desvirtuada), e que via ruir diante dos seus olhos e com a aparente anuência do Direito. A dona da casa não queria fazer desfeita ao convidado, preferindo com isso confrontar o marido. Disse, em tom meigo, mas firme, que o Sr. Direito havia de se recordar que estão em causa questões muito além da separação dos poderes, como por exemplo a segurança de todo um sistema, a necessária obediência às regras do filho que melhor representava o povo do condomínio, bem como o respeito ao fiel julgamento do mais sábio dos guris.
O patriarca já não se continha mais, e não teve pudores em dizer que prefere passar por cima da pretensa separação dos poderes, bem como de alguns egos e vaidades, do que ver um dos seus filhos apenas agravando o erro cometido pelos outros dois (em produzir a regra contrária aos direitos – fundamentais! – estabelecidos no contrato social; e em não julgá-las nesse tom).
Nessa altura, o Judiciário questionou se alguém poderia garantir que as decisões do Executivo sobre a adequação, ou não, seriam sempre acertadas, e, principalmente, se em dada época não poderiam acabar por se tornarem mais favoráveis ao próprio Executivo, e não tanto aos condôminos, numa parcialidade egoística e permeada por desvios de intenção, características quando uma centralização de poderes se firma. A Sra. Democracia lembrou ainda, em voz baixa, do caos vivenciado no Condomínio vizinho (o Behemoth, construído pelo Sr. Hobbes, mesmo arquiteto do Leviatã). Neste momento todos na sala resolveram encarar o Direito e aguardar dele uma resposta.
Confesso que eu próprio não pude ouvir bem a explanação, mas a partir do pouco que pude ouvir (não olvidando das intervenções dos demais interlocutores) produzirei um relatório, a ser apresentado parcialmente em 26 de fevereiro aos senhores colegas, e entregue derradeiramente em 30 de setembro de 2008 ao Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva.
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1 comentário:
Caro Cláudio, como toda briga doméstica, as disputas sempre trazem consigo, como bem ressaltado, um pouco de "jogo de vaidade" e um pouco de "zelo" pelo que se defende. E, nesse "jogo", estou eu ansioso para ouvir o "parecer final" de quem ouviu todas essas explanações do Sr. Direito e da Sra. Democracia, com as devidas interferências dos filhos ofendidos.
Gostei do texto, muito inteligente e criativa a forma de contar esse "jogo" entre os "irmãos.
Abraço e até breve!
Nildeval Chianca Rodrigues Jr.
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